Distrito 09

Antecipando os dias da Colheita, o ambiente no Distrito 9 estava bastante tenso. Haviam menos gente na rua, as pessoas falavam menos e pareciam nervosas. Porém, o trabalho continuava.

Em pouco tempo Koda fica pronto e decide resolver o problema agora mesmo. Eu concordo com a situação e abro a porta do quarto, me certificando de que ainda estamos sozinhos. Por sorte, Alleta e Noah ainda não chegaram. Noah poderia muito bem nos ajudar, mas sabemos que ele só serve para lamber a mãe e obedecer às suas ordens. Ela nunca exporia o filho ao perigo. Respirando fundo, sigo caminho até a entrada da casa, tentando pensar positivo. Sei que meu irmão está cansado de ir ao centro, mas a sua preocupação consegue ser maior.

Geralmente, Koda é o que mais resolve as coisas com Capu. Sendo assim, não o vi muitas vezes, entretanto pelos relatos podemos contar com a sua privacidade. Quando voltarmos, teremos que arrumar alguma desculpa para Alleta, só que mesmo assim, seu sermão será ouvido por uns bons minutos.

– Você está bem para ir ao centro? Sei que é uma boa caminhada.

A noite já está se formando, fazendo com que um leve vento sopre nossos cabelos. Ambos somos agraciados com fios volumosos e cacheados. Facilmente nos chamariam de gêmeos. Não quero ficar muito tempo aqui fora, já que o toque de recolher as vezes é severo. Koda sempre diz para não me preocupar com essas coisas, porém algo nesse distrito ainda me deixa inquieta.

– Sobre o pacificador que te viu. Ele parece ser um dos novos?

- Estou bem, não se preocupe comigo. - Minha resposta é direta, sem muitos rodeios até estarmos do lado de fora da casa. Minhas pernas ainda doem um pouco e certamente estarão piores quando voltarmos, mas coisas mais importantes que as minhas dores precisam ser resolvidas.

Assim que tomamos a estrada comum uma leve brisa sopra, trazendo consigo o cheiro de soja. Um sensação ruim acomete minha garganta, me fazendo lembrar das plantações. Eu odeio esse cheiro, porque a casa de Alleta está sempre fedendo a soja e qualquer coisa que faça conexão com aquela casa será ruim para mim.

Sacudo a cabeça em negativa para responder a pergunta de Tanna sobre o pacificador intruso.

- Não, ele é um dos de sempre. Lembro de já ter visto sua cara velha outras vezes. Acho que é um dos amigos do prefeito... - Deixo que as palavras morram na minha boca quando percebo a ligação.

Fico algum tempo pensando no que aconteceu e imagino o quão próximo aquele cara é do prefeito.

- Precisamos encontrar Capu logo. Ele deve estar no pavilhão da fábrica de sempre. - Termino a frase já apertando o passo.

   

Koda parece não estar tendo pensamentos muito felizes e eu respeito seu momento, aguardando a resposta sobre o pacificador. Quando a recebo, forço meu corpo para continuar andando. Meu irmão parece ter a mesma reação, parando no meio da frase. Não era preciso dizer nada. Precisávamos achar Capu o mais rápido possível. Seguimos em direção ao pavilhão da fábrica, tendo esperanças de achar o homem no local. Teríamos que pensar em algo muito bom.

De alguma maneira, nossos passos acabam se acelerando, levados pela preocupação. Agora pouco me importava o toque de recolher ou uma bronca de pacificadores ou Alleta. Capu gosta de nossos acordos e pode muito bem mexer alguns pauzinhos, mesmo que tenha que tirar algo se seu bolso.

- Ele precisa da gente, Koda. Somos a sua melhor fonte aqui dentro. - quero muito acreditar em minhas palavras. - Não vai ser um pacificador que vai acabar com isso.

Ou um prefeito...

- Ele precisa de nós tanto quanto nós precisamos dele, mas se o esquema vier à tona vai todo mundo pra vala e eu tenho certeza que Capu tira o corpo fora antes mesmo que a gente consiga pensar em pedir piedade ao chicote dos pacificadores.

A conversa não me agrada. Nada nessa situação me agrada. Minhas pernas doem, meu pulmão queima e eu já estou cansado o suficiente do dia de trabalho.

- Tanna, você já parou para pensar na merda em que nos metemos? Como fomos parar com a bosta da Alleta? - Desacelero o passo. A pergunta é retórica. É claro que ela já pensou. Talvez seja em tudo o que ela consegue pensar agora, mas eu precisava verbalizar isso ou acabaria sufocado. - Vamos. Temos que retomar o ritmo ou não pegaremos Capu sóbrio o suficiente para ter uma conversa decente. - Volto a dar passadas mais largas, tendo certeza de que minha irmã irá acompanhar.

Não demora muito para que tenhamos que sair da estrada principal, nos esgueirando por terrenos baldios, passando por baixo de cercas e cortando caminho através das plantações para chegar mais rápido ao nosso destino. De acordo com que o centro se aproxima, a paisagem muda de tom. Quando retomamos a estrada principal já é possível ver os galpões das fábricas de processamento. Trocentas chaminés, nenhuma alma viva à vista.

 
   

As palavras de Koda me deixam bastante pensativa, já que não sabemos onde tudo isso vai dar. Se alguém for se ferrar, não vai ser Capu. Sei que meu irmão está cansado, mas isso é algo que não posso fazer  sozinha. Nesse momento, o que menos me preocupa é Alleta. Eu quero que ela se dane. Acabamos com ela de maneira cômoda, como um casamento que é arrastado dia após dia. Ficamos presos. Eu devia ter pensado em uma alternativa melhor.

— Eu já me perguntei isso muitas vezes, mas sei que não podemos desfazer nossas escolhas. Se conseguimos sair dessa, vamos ter que repensar toda a nossa vida, Koda. — falo sinceramente, expondo tudo o que sinto. — Se aquele idiota não estiver sóbrio…

Seguimos o caminho em silêncio, cada um perdido em sua própria mente. A caminhada é mais lenta que o normal, me deixando um pouco nervosa. O centro está deserto, fazendo o clima ainda mais tenso. Tento apressar o passo, querendo sair dessa situação o mais rápido possível.

Quando finalmente chegamos ao centro sou obrigado a parar de caminhar, puxando minha irmã para trás de um dos prédios. Exausto, coloco minhas costas contra a parede e deixo a cabeça pender para frente. Tanna fica de guarda enquanto recupero meu fôlego. Poucas goladas de ar depois já consigo me erguer novamente.

Paro alguns segundos para observar minha irmã. Seus olhos atentos, focados em não deixar que nada passe por eles. Quando me aproximo dela cutuco seu ombro e faço sinal para que me siga de perto, então volto a caminhar de passo acelerado, dessa vez na direção de uma das fábricas de processamento. Não tenho certeza se Tanna já teve que encontrar Capu no galpão alguma vez, então talvez ela não saiba onde ele fica após o toque de recolher.

- Aqui. - Sussurro quando chegamos ao pátio de concreto da fábrica que possui um grande galpão circular de metal, ao fundo, após o prédio das chaminés. - É lá que ele fica depois do toque. "Guardando" os grãos que foram processados. - Digo apontando para o galpão e logo em seguida volto a caminhar, sempre rente às grades.

A meio caminho já consigo ver a luz da guarita de Capu acesa. Como todas as outras vezes, o homem deve estar lá atirado na cadeira, fedendo a aguardente e dormindo por trás da viseira de seu capacete branco de pacificador.  
 
   

Fico ao lado de Koda, já que ele conhece o terreno melhor que eu. Espero que Capu esteja realmente sóbrio ou as coisas ficarão bem difíceis. Estou tão tensa que sei que daqui a pouco se formará uma ruga no meio da minha testa. Meu irmão apresenta o galpão e eu fico atenta aos elementos, percebendo a quantidade de grãos processados. Nem dá pra acreditar que pessoas se matam de trabalhar para um pouco disso e que todo o restante é mandado para a Capital.

Se algo acontecer, não quero que meu irmão seja prejudicado. Ele é inteligente e pode se virar muito bem aqui dentro. Precisaremos pensar em uma solução rápida que posso beneficiar o nosso lado, nos permitindo sobreviver sem passar por muito sofrimento. Alleta volta a minha mente e eu a afasto, com raiva de sua presença em nossas vidas.

— Eu não sinto o cheiro de álcool. — comento, baixo.

Adentramos mais o local, encontrando Capu em uma postura controlada. Ele parece não estar em um dia divertido, pois não se encontra largado procurando uma maneira de passar o tempo. Koda parece surpreso.

Surpreendentemente o pacificador parece sóbrio quando o encontramos em pé ao lado da grande porta corrediça do galpão. Encaro a cena com olhos desconfiados, assinto com a cabeça o comentário de Tanna e titubeio antes de finalmente me aproximar do homem.

- Capu? - Chamo com um tom de questão na voz, para ter certeza de que é ele mesmo que está por trás da viseira.

Ao ouvir minha voz o homem remove o capacete e revela seu rosto de barba negra cacheada. Eu deveria ficar aliviado por ser ele mesmo, mas não estou. É estranho encontra-lo sóbrio a uma hora dessas, talvez fosse menos alarmante encontrar outra pessoa no lugar dele do que um Capu sóbrio após o toque de recolher.

- Precisamos de uma resposta sobre o que aconteceu hoje mais cedo. - Solto as palavras em tom de intimação, parando a sua frente de braços cruzados.

Poucas pessoas falariam dessa forma com um pacificador, eu ainda me espanto comigo mesmo às vezes, mas já trato com Capu a tanto tempo que quase não consigo vê-lo mais como um pacificador.

- Que que tu tá fazendo aqui, bichinho? - Sua voz é pausada tem um tom de deboche como sempre. Reviro os olhos para o apelido.

Eu e minha irmã precisamos saber que deu tudo certo com... com a situação de hoje. - Não sei muito bem como tratar essa bosta. Talvez eu devesse chamar de bosta mesmo que é exatamente o que aconteceu. - A gente precisa de uma resposta para dar para Alleta. A mulher está completamente louca. - Minto sobre Alleta saber o que aconteceu. Assim como Noah, o pacificador parece bastante acuado quando o assunto é com Alleta. Talvez assim ele acelere um pouco as coisas.

O pacificador me encara por alguns segundos sem dizer nada. Ele tem um sorriso idiota no rosto e a boca entreaberta, como se fosse falar algo mas quisesse fazer suspense antes. Lanço um olhar para Tanna, deixando bem claro que estou ficando sem paciência. Se ela tiver alguma ideia de como abordar o assunto de forma mais direta, a hora de agir é agora.
   

Ouço atentamente as palavras de Koda e também sei da sua preocupação. A todo momento olho nos olhos do pacificador, tentando ler alguma de suas expressões, mas infelizmente não chego a nenhuma conclusão. Meu irmão foi inteligente em mentir sobre Alleta. Acho que nunca passamos por essa situação antes, visto que nossa inquietação nos trouxe até aqui. As coisas não devem estar boas se Capu está sóbrio. Koda sempre me diz que o pacificador se embebeda quando tem a oportunidade. Talvez ele estivesse esperando alguém… Nós, talvez.

O problema daqui é que as pessoas estão constantemente atentas para tirar vantagem dos outros. Sobrevive aquele que mais se adapta ao meio. Eu e Koda fizemos isso, contudo é incrível como um único indivíduo pode colocar tudo isso a perder. Respiro fundo e tento juntar algumas palavras em minha mente.

— Nossa relação é muito boa, Capu. Ambos os lados tiram proveito e isso pode continuar assim, já que sempre fomos leais e nunca deixamos a desejar. — olho para o pacificador, não deixando transparecer o meu receio. — Só precisamos dessa certeza e nunca mais tocamos nesse assunto novamente. Daremos um jeito para sermos mais discretos ainda, se é que isso é possível.

Minha voz é firme assim como a minha postura. Ele precisa saber que está lidando com pessoas centradas, embora sejamos jovens e nossos nomes ainda colocados na Colheita. O mais velho mantém aquele sorrisinho filho da puta no rosto, quase me descontrolando, porém o jogo não é assim.

— Se fosse tão fácil assim, bichinha. — ele me olha de cima a baixo, como quem tenta sair por cima em uma situação.

Olho de relance para Koda, tentando transmitir que passei o meu melhor. Volto a atenção para Capu, aguardando o resto de sua resposta.